quinta-feira, 8 de abril de 2010

TRÍDUO PASCAL 2010 – SEXTA-FEIRA SANTA – O Rosto Doloroso de Cristo



SEXTA -FEIRA SANTA
PAIXÃO DO SENHOR

Is 52, 13-53, 12
Sl 30
Hb 4, 14-16; 5, 7-9
Jo 18, 1-19, 42


O Rosto Doloroso de Cristo

Cristo é o rosto da Palavra. A Liturgia de hoje convida-nos a contemplar o rosto doloroso do Senhor. Ele exprime, para nós, a mais radical e eficaz Palavra amorosa que Deus nos dirige, a nós homens pecadores. Só contemplando este rosto de dor, percebemos que só no mistério do Verbo encarnado se percebe o mistério do homem. Estão ali espelhados a nossa realidade e o nosso destino. Talvez devido ao significado simbólico do rosto humano, permitiu Deus que toda a densidade do sofrimento se exprimisse no rosto do Filho, quando ficou banhado pelas gotas de sangue, quando a coroa de espinhos o tornaram irreconhecível, quando foi esbofeteado pelos soldados, cumprindo a profecia de Isaías: “tão desfigurado estava o Seu rosto que tinha perdido toda a aparência de um ser humano” (Is. 52,13). Mas nesse rosto desfigurado, a infinita confiança filial e o amor por todos os homens, brilham sempre no seu olhar. Ao olhar-nos, Ele vê toda a nossa realidade humana renovada, a beleza de um Povo que, resgatado pelo seu sofrimento, se lhe une numa atitude sincera de louvor a Deus, Trindade Santíssima. A alegria de um Povo fiel à nova Aliança, que Ele está a selar com o seu sangue, dá sentido à dureza do sofrimento. Pilatos, quando depois de ter mandado açoitar Jesus o apresenta à multidão, dizendo “eis o Homem”, interpreta, sem o saber, a realidade do que se está a passar. Eis o homem, na tristeza do pecado, no drama do sofrimento injusto, vítima de injustiça e violência; eis o homem para quem renasce a esperança de recuperar a sua grandeza e a sua dignidade.

Ao contemplar o rosto doloroso de Cristo, tocamos no mais insondável do Mistério, no dizer de João Paulo II: “E assim, a nossa contemplação do rosto de Cristo trouxe-nos até ao aspecto mais paradoxal do seu mistério, que se manifesta na hora extrema, a hora da Cruz. Mistério no mistério, diante do qual o ser humano pode apenas prostrar-se em adoração”.

No seu rosto doloroso, Cristo olha o homem real, porque Ele é homem e sabe o que é ser homem. Ele é o homem cuja intimidade confiante com o Pai nunca foi interrompida e sofre o drama do pecado dos seus irmãos. É na sua intimidade com Deus que Ele compreende o que deveria ser o homem. Essa consciência do pecado dos seus irmãos provoca-lhe o mais atroz sofrimento. Ouçamos ainda João Paulo II: “Para transmitir aos homem o rosto do Pai, Jesus teve de assumir, não apenas o rosto do homem, mas também o rosto do pecado”. São Paulo compreendeu esse drama de Jesus Cristo: “Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus O fez pecado por nós para que nos tornássemos n’Ele justiça de Deus” (2Cor. 5,21). Já Isaías profetizara: “E o Senhor fez cair sobre Ele as faltas de todos nós” (Is. 53,12).

Dada a universalidade da redenção e da consciência de Cristo, nesse olhar doloroso sobre a degradação da humanidade, vê a humanidade de todos os tempos, a humanidade dos nossos dias e o pecado de cada um de nós. É no realismo desse olhar que esse rosto é, hoje, para cada um de nós, palavra amorosa de Deus, suscitando a esperança da conversão.

Sem a intimidade filial com Deus, este olhar dramático sobre o pecado não seria humanamente suportável. Se, por um lado, essa intimidade e confiança, em nenhum momento quebradas, define o verdadeiro drama do pecado, ela abre também o coração à alegria da redenção, à glória que o Povo dos redimidos há de prestar à Santíssima Trindade. Mais uma vez, o Papa João Paulo II: “O grito de Jesus na cruz, amados irmãos e irmãs, não traduz a angústia dum desesperado, mas a oração do Filho que, por amor, oferece a sua vida ao Pai pela salvação de todos. Enquanto se identifica com o nosso pecado, «abandonado» pelo Pai, Ele «abandona-se» nas mãos do Pai. Os seus olhos permanecem fixos no Pai. Precisamente pelo conhecimento e experiência que só Ele tem de Deus, mesmo neste momento de obscuridade Jesus vê claramente a gravidade do pecado e isso mesmo fá-l’O sofrer. Só Ele, que vê o Pai e por isso rejubila plenamente, avalia até ao fundo o que significa resistir pelo pecado ao seu amor. A paixão é sofrimento atroz na alma, bem mais intensamente, que no corpo. A tradição teológica não deixou de interrogar-se como pôde Jesus viver simultaneamente a união profunda com o Pai, por sua natureza fonte de alegria e beatitude, e a agonia até ao grito do abandono. Na realidade, a presença conjunta destas duas dimensões, aparentemente inconciliáveis, está radicada na profundidade insondável da união hipostática”.

O rosto doloroso do Senhor revela-nos o mistério do homem. Além do drama do pecado, aponta-nos o sentido do sofrimento humano. Como não contemplar naquele rosto, todos os rostos humanos marcados pela dor, ultrajados pela injustiça, desfigurados pela miséria, vilipendiados pelo ultraje à sua dignidade? O que fizestes a estes, foi a Mim que o fizestes. Está ali espelhado o drama humano, o drama da maldade dos homens para com os seus semelhantes. Mas brilha também a luz da esperança, o sentido redentor de todo o sofrimento humano.

Ao contemplar o rosto doloroso do Senhor, somos envolvidos por um mistério: como é possível viver ao mesmo tempo o horror do sofrimento e a alegria da intimidade amorosa com Deus, que se exprime, não apesar da dor, mas na própria dor. Esse é o raio de luz que aquele olhar lança sobre o sofrimento humano. Em Cristo, o cristão pode experimentar essa harmonia da alegria e da dor. João Paulo II ilustra esta possibilidade com dois testemunhos de Santos, afirmando “não ser raro terem os santos vivido algo que se assemelha à experiência de Jesus na Cruz, num misto paradoxal de beatitude e dor”. O primeiro exemplo dado é o de Santa Catarina de Sena, citando-a: “A alma sente-se feliz e atormentada: atormentada pelos pecados do próximo, feliz pela união e afeto da caridade que a invadiu. Essas almas imitam o Cordeiro Imaculado, o meu Filho Unigênito, que na Cruz se sentia feliz e atormentado”.

Cita, depois, Teresa de Lisieux: “Nosso Senhor, no Horto das Oliveiras, gozava de todas as alegrias da Trindade, e todavia a sua agonia não era menos atroz. É um mistério. Mas posso assegurar-lhe (escreve à Superiora), que compreendo alguma coisa desse mistério a partir do que sinto em mim mesma”.

A Paixão de Cristo encerra o segredo do sentido do sofrimento humano. Isso é claro para o Apóstolo Paulo, para quem os sofrimentos do cristão são nele os sofrimentos de Cristo (cf. 2Co. 1,5); com a força da sua ressurreição podemos, pelo nosso sofrimento, participar no seu sofrimento (cf. Fil. 3,10) e dar-lhe o mesmo sentido redentor. Unidos a Cristo, um só com Cristo, a Paixão do Senhor perpetua-se no sofrimento dos discípulos. Aqueles a quem o Espírito do ressuscitado deu a força de viver assim o sofrimento, o contemplar o rosto doloroso do Senhor comunica-lhes uma serenidade pacificadora.


Dom José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa
Homilia da Paixão do Senhor
Sé Patriarcal, 10 de Abril de 2009

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