sábado, 27 de fevereiro de 2010

Homilia Lc 9, 28b-36: Frei Raniero Cantalamessa - A Transfiguração é um mistério para nós



Ano C
II Domingo da Quaresma
Gn 15, 5-12.17-18
Sl 26
Fl 3,17- 4,1
Lc 9, 28b-36


A Transfiguração é um mistério para nós

O Evangelho do domingo relata o episódio da Transfiguração. Lucas, em seu evangelho, diz também o motivo pelo qual Jesus «subiu ao monte» naquele dia: Ele o fez «para orar». Foi a oração que tornou sua veste branca como a neve e seu rosto resplandecente como o sol. Segundo o programa explicado na última vez, desejamos partir deste episódio para examinar o lugar que a oração ocupa em toda a vida de Cristo e o que nos diz esta sobre a identidade profunda de sua pessoa.

Alguém disse: «Jesus é um homem judeu que não se sente idêntico a Deus. De fato, não se reza a Deus quando se é considerado como idêntico a Deus». Deixando de lado por enquanto o problema sobre o que Jesus pensava de si mesmo, esta afirmação não leva em conta uma verdade elementar: Jesus é também homem, e é como homem que ora. Deus tampouco poderia ter fome e sede, ou sofrer, mas Jesus tem fome e sede, e sofre, porque também é homem.

No entanto, veremos que é precisamente a oração de Jesus o que nos permite dar uma olhada no mistério profundo de sua pessoa. É um fato historicamente comprovado que Jesus, em sua oração, se dirigia a Deus chamando-o de «Abbà», isto é, querido pai, meu pai, e até meu papai. Este modo de dirigir-se a Deus, ainda não totalmente ignorado antes d’Ele, é tão característico de Cristo que obriga a admitir uma relação única entre Ele e o Pai celestial.

Escutemos uma destas orações de Jesus, recolhida por Mateus: «Naquele tempo, Jesus disse: ‘Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequenos. Sim, Pai, pois tal foi teu beneplácito. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece bem o Filho senão o Pai, e ninguém conhece bem o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o queira revelar’» (Mt 11, 26-27). Entre Pai e Filho existe, como se vê, uma reciprocidade total, «uma estreita relação familiar». Também na parábola dos vinhateiros homicidas emerge claramente a relação única, como de filho para pai, que Jesus tem com Deus, diferente da de todos os demais, que são chamados «servos» (Mc 12, 1-10).

Neste ponto surge, no entanto, uma objeção: por que então Jesus não se atribuiu jamais abertamente o título de Filho de Deus durante sua vida, mas falou sempre de si como «Filho do homem»? O motivo é o mesmo pelo qual Jesus não diz nunca que é o Messias, e quando outros o chamam com este nome se mostra reticente, ou inclusive proíbe que o digam. A razão desta forma de comportar-se é que aqueles títulos eram entendidos pelas pessoas em um sentido preciso que não correspondia à idéia que Jesus tinha de sua missão.

Filhos de Deus eram chamados, de certa forma, todos: os reis, os profetas, os grandes homens; por Messias se concebia o enviado de Deus que combateria militarmente os inimigos e reinaria sobre Israel. Era a direção na qual o demônio buscava impulsioná-lo com suas tentações no deserto... Seus próprios discípulos não haviam compreendido isso e continuavam sonhando com um destino de glória e de poder. Jesus não tentava ser este tipo de Messias. «Não vim -dizia -para ser servido, mas para servir». Ele não veio para tirar a vida de ninguém, mas para «dá-la em resgate de muitos».

Cristo devia antes sofrer e morrer para que se entendesse que tipo de Messias Ele era. É sintomático que a única vez que Jesus se proclama Ele mesmo Messias é enquanto se encontra preso ante o Sumo Sacerdote, a ponto de ser condenado à morte, já sem possibilidades de equívocos: «És tu o Messias, o Filho de Deus Bendito?», pergunta-lhe o Sumo Sacerdote, e Ele responde: «Eu sou!» (Mc 14, 61s).

Todos os títulos e as categorias dentro das quais os homens, amigos e inimigos, tentam situar Jesus durante sua vida são estreitas, insuficientes. Ele é um mestre, «mas não como os demais mestres», ensina com autoridade e em nome próprio; é filho de Davi, mas é também Senhor de Davi; é mais que um profeta, mais que Jonas, mais que Salomão. A questão que as pessoas se propõem, «Quem é este?», expressa bem o sentimento que reinava em torno d’Ele como de um mistério, de algo que não se conseguia explicar humanamente.

A tentativa de certos críticos de reduzir Jesus a um judeu normal de seu tempo, que não disse nem fez nada especial, choca completamente com os dados históricos mais certos que possuímos sobre Ele e se explica só com a rejeição por preconceitos de admitir que algo transcendente possa aparecer na história humana. Entre outras coisas, não explica como um ser tão normal se convertera (segundo os próprios críticos) no «homem que mudou o mundo».

Voltamos agora ao episódio da Transfiguração para tirar dele algum ensinamento prático. Também a Transfiguração é um mistério «para nós», nos contempla de perto. São Paulo, na segunda leitura, diz: «O Senhor Jesus Cristo transfigurará este miserável corpo nosso em um corpo glorioso como o seu». O Tabor é uma janela aberta a nosso futuro; nos assegura que a opacidade de nosso corpo um dia se transformará também em luz; mas é também um refletor que aponta ao nosso presente; evidencia o que o nosso corpo já é agora, acima de suas míseras aparências: o templo do Espírito Santo.

O corpo não é para a Bíblia um apêndice dispensável do ser humano; é parte integrante dele. O homem não tem um corpo; é corpo. O corpo foi criado diretamente por Deus, assumido pelo Verbo na encarnação e significado pelo Espírito no batismo. O homem bíblico fica encantado ante o esplendor do corpo humano: «Tu me teceste no ventre de minha mãe. Prodígio sou, prodígios são tuas obras» (Sal 139). O corpo está destinado a compartilhar eternamente a mesma glória da alma: «Corpo e alma, ou serão duas mãos unidas em eterna adoração, ou dois pulsos presos por uma maldade eterna» (Charles Péguy). O cristianismo prega a salvação do corpo, não a salvação a partir do corpo, como faziam, na antiguidade, as religiões maniqueístas e gnósticas e como fazem ainda hoje algumas religiões orientais.

Mas o que dizer a quem sofre? Quem deve assistir à «desfiguração» de seu próprio corpo ou de ente querido? Para eles é talvez a mensagem mais consoladora da Transfiguração: «Ele transfigurará este miserável corpo nosso em um corpo glorioso como o seu». Serão resgatados os corpos humilhados na enfermidade e na morte. Também Jesus, em pouco tempo, será «desfigurado» na paixão, mas ressurgirá com um corpo glorioso, com o qual vive eternamente, com quem a fé nos diz que iremos nos reunir depois da morte.


Frei Raniero Cantalamessa
Pregador da Casa Pontifícia
Cantalamessa.org

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